Antologia Poética, de Mário Quintana
A Antologia Poética de Mário Quintana foi publicada pela primeira vez em 1966, com 60 poemas inéditos, e foi organizada por Rubem Braga e Paulo Mendes Campos.
Fonte:Uma nova edição foi publicada em 1977. Neste volume estão reunidos cerca de 200 poemas entre os mais marcantes produzidos pelo poeta. Mário Quintana foi um dos maiores poetas brasileiros da segunda metade do século, ocupando a restrita galeria de grandes poetas que obtiveram enorme reconhecimento popular, como Vinicius de Morais, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles e Manuel Bandeira. A seleção cuidadosa de Sergio Faraco revela ao leitor uma parte significativa da obra desse grande poeta. Transitando, habilmente, por temas do cotidiano e sugerindo uma reflexão sobre as questões mais interessantes da vida - como o passado e a morte -, Quintana consegue se expressar de maneira simples e comoventemente terna, num lirismo ao mesmo tempo encantador, realista, crítico.
Mário Quintana é um desses escritores cujas frases, líricas, estão submetidas a um mesmo espírito que segue a proposta baudelairiana de “a infância reencontrada”. O jogo lúdico da banalidade de um cotidiano singelo sem finalidade é visto, entretanto, pela sensibilidade do poeta como um jogo lúcido, dentro do qual se extraem os espantos decorrentes de um mundo que, se simples, é, sobretudo, desconcertante. Em uma aparente ingenuidade formal se esconde uma rede de sentidos, elipses, alusões, sutilezas verbais e rítmicas que revelam a grandeza desse poeta. Sendo a tarefa da poesia resguardar na linguagem o mistério do dia-a-dia, celebrá-lo em palavras, não é à toa que inúmeros versos de Quintana se incorporam à sabedoria popular, sem que as pessoas nem desconfiem de sua autoria.
Despreocupado em relação à crítica, Mário Quintana fazia poesia porque "sentia necessidade", segundo suas próprias palavras. Em sua poesia há um constante travo de pessimismo e muito de ternura por um mundo que, parece, lhe é adverso.
A poesia de Mário Quintana se caracteriza por um profundo humanismo, no conteúdo, e na forma, por uma "difícil simplicidade". Ternura, melancolia, intimismo, misticismo, humor irônico (para disfarçar o sentimentalismo), nostalgia da infância, de pureza - são os motivos de seu mundo poético.
A facilidade com que se exprime é ilusória: nada existe aí parecido com soluções fáceis. É o artista consciente das virtualidades expressivas de seu instrumento, do verso e da língua.
Atraído pelo realismo mágico ou fantástico, por visões oníricas ou surrealistas, Mário Quintana procura comunicar esse mundo supra-real mediante uma grande economia, mas também grande eficiência de meios.
Consegue-o com o poder sintético das imagens, metáforas, sinestesias, associações insólitas e outros tantos recursos da poesia moderna.
O conjunto poético do livro mostra um poeta com lembranças da infância, com olhar para uma rua imaginária, olhar este varia entre a ironia e a melancolia.
A poesia de Quintana é a humanidade posta em verso. Daí seu humor não apresentar o traço racional, intelectualizado, mas aproximar-se de uma visão chapliniana do mundo, não distanciada da que teria o homem comum.
Em permanente “estado poético” Quintana parece não escolher assunto: todos lhe servem, tudo o que existe é poético na sua percepção feiticeira. Ao fazer poesia como quem respira, Quintana não se situa, como poeta, acima dos demais ou fora do mundo. Ao contrário, sendo um entre outros (“Eu nada entendo da questão social./ Eu faço parte dela, simplesmente...”), como dirá, ele se dilui no contexto geral. Assim, o social, em Quintana, não está designado pelo poema: é o poema. Note-se, nesse sentido, o soneto IV, de A rua dos cataventos, em seu final:
Pra que viver assim num outro plano?
Entremos no bulício cotidiano...
O ritmo da rua nos convida.
Vem! Vamos cair na multidão!
Não é poesia socialista...Não.
Meu pobre Anjo...É...simplesmente...a Vida!...
Para muitos a menção à poesia de Mario Quintana faz esboçar-se um sorriso de alegria. São aqueles que acreditam ver, nesta poesia, uma ingenuidade e uma simplicidade que tem feito, muitas vezes, o sucesso deste que tem sido apontado como um dos maiores poetas brasileiros. Para outras, o poeta apresenta uma poesia triste, de quem tem consciência do próprio problema e ante à possibilidade de resolve-lo, enfrenta-o resolutamente, sem qualquer desespero; e sua ironia por vezes até ferina, está a dizer coisas bem menos cor-de-rosas e bonitas.
Uma poesia extremamente crítica, a obra de Quintana constrói-se na tensão criada entre os opostos (pessimismo e alegria de viver). Por exemplo, no livro de estréia, “A rua dos cataventos” (todo ele feito em sonetos) o poeta indaga-se a respeito da morte, ao mesmo tempo que reafirma a vida e, aí encontra-se o famoso Soneto XVII em que se lê:
Da vez primeira em que me assassinaram
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha...
Depois de cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha...
E hoje dos meus cadáveres eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada...
Arde um toco de vela amarelada...
Como o único bem que me ficou.
Vinde, corvos, chacais, ladrões da estrada!
Ah! Desta mão, avaramente adunca,
Ninguém há de arrancar-me a luz sagrada.
Aves da noite! Assas de horror! Voejai!
Que a luz, trêmula e triste como um ai,
A luz do morto não se apaga nunca.
Além da obcecação pelos temas da morte e da vida, acrescenta-se a estas a infância perdida, a ojeriza que o poeta experimenta pelas grandes metrópoles, a defesa da boemia, a saudade das pequenas cidades e vilas, o pôr-do-sol do rio Guaíba.
Obra marcada por uma grande diversidade de temas:
• tristeza das coisas
• morte
• infância (Alegrete)
• progresso
• Porto Alegre
• Ironia do cotidiano
Características:
• individualismo
• pureza
• profundo humanismo
• finíssimo senso de humor
• poesia epigramática
• musicalidade
• intimismo
• pureza
• nostalgia da infância
• simplicidade
• liberdade poética
• cromatismo.
Recordo Ainda...
Para Dyonélio Machado
Recordo ainda...E nada mais me importa...
Aqueles dias de uma luz tão mansa
Que me deixavam, sempre, na lembrança,
Algum brinquedo novo à minha porta...
Mas veio um vento de Desesperança
Soprando cinzas pela noite morta!
E eu pendurei na galharia torta
Todos os meus brinquedos de criança...
Estrada afora após segui...Mas ai,
Embora idade e senso eu aparente,
Não vos iluda o velho que aqui vai:
Eu quero os meus brinquedos novamente!
Sou um pobre menino...acreditai...
Que envelheceu, um dia, de repente!...
Não é à toa que Mario Quintana é considerado por muitos como um poeta de romantismo tardio. Seus versos por vezes recuperam as paisagens da infância perdida, unindo, vias lembrança, o velho ao menino, aquilo que o tempo distanciou. Tema nostálgico, ao gosto romântico.
"Recordo ainda...", quanto à métrica é versos decassílabos, rimas interpoladas e alternadas, com recursos do soneto clássico, com referências simbolistas e românticas (=Meus oitos anos, de Casimiro de Abreu) e o assunto central: a idealização da infância como a época mais bela da vida do poeta.
Canção para um valsa lenta
Minha vida não foi um romance...
Nunca tive até hoje um segredo.
Se me amas, não digas, que morro
De surpresa...de encanto...de medo...
Minha vida não foi um romance...
Min há vida passou por passar.
Se não amas, não finjas, que vivo
Esperando um amor para amar.
Minha vida não foi um romance...
Pobre vida...passou sem enredo...
Glória a ti que me enches a vida
De surpresa, de encanto, de medo!
Minha vida não foi um romance...
Ai de mim...Já se ia acabar!
Pobre vida que toda depende
De um sorriso..de um gesto...um olhar...
O Mapa
Olho o mapa da cidade
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo...
(E nem que fosse o meu corpo!)
Sinto uma dor infinita
Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei...
Há tanta esquina esquisita.
Tanta nuança de paredes.
Há tanta moça bonita
Nas ruas que não andei
(E há uma rua encantada
que nem em sonhos sonhei...)
quando eu for, um dia desses,
poeira ou folha levada
no vento da madrugada.
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso
Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar.
Suave mistério amoroso.
Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)
E talvez de meu repouso...
O amor à cidade que o acolheu, com descrição minuciosa de um olhar de poeta.
Esconderijos do Tempo
Pela corola do gramofone
O Caruso cantava Uma Furtiva Lágrima
e ninguém levava a mal aquele tom fanhoso,
talvez porque todo o mundo sabia que ele já estava morto.
Se alguém espiasse pela goela do gramofone,
poderia ver como era o Outro Mundo,
mas ninguém olhava parque devia ser muito, muito longe
a ponto de estragar o som daquela maneira.
E o pobre Caruso cantava que te cantava afogado pelas águas do tempo
e por isso a sua voz era ainda mais pungente:
não é brinquedo estar morto e continuar cantando.
Caruso, eu estou pensando estas coisas não aqui e agora
mas naquele Café que tu sabes, lá por volta de 1923...
Também não é brinquedo continuar vivo e ficar falando para o que passou!
"Esconderijos do Tempo" aborda a psicologiaAche os cursos e faculdades ideais para você. É fácil e rápido. do ser humano, relacionado ao aspecto social.
A ênfase é dada à falta de personalidade, de aceitação às condições de cada um. O ser humano é frustrado, perdeu sua individualidade, sua riqueza espiritual. Percebe-se a possível intenção do autor, em alertar o homem, e exigir dele a solução destes problemas. Sem contudo desconhecer que, a causa e a solução encontram-se no próprio homem.
Ritmo
Na porta
a varredeira varre o cisco
varre o cisco
varre o cisco
Na pia
a menininha escova os dentes
escova os dentes
escova os dentes
No arroio
a lavadeira bate a roupa
bate a roupa
bate a roupa
até que enfim
se desenrola
toda a corda
e o mundo gira imóvel como um pião!
Poema de Circunstância
Onde estão os meus verdes?
Os meus azuis?
O arranha-céu comeu!
E ainda falam nos mastodontes, nos brotossauros, nos tiranossauros,
Que mais sei eu...
Os verdadeiros monstros, os papões, são eles,os arranha-céus!
Daqui
Do fundo
Das suas goelas,
Só vemos o céu, estreitamente, através de suas
Empinadas gargantas ressecas.
Para que lhes serviu beberem tanta luz?
De fronte
À janela aonde trabalho...
Há uma grande árvore...
Mas já estão gestando um monstro de permeio!
Sim, uma grande árvore muito verde...Ah,
Todos os meus olhares são de adeus
Como o último olhar de um condenado!
• Métrica: versos irregulares
• Rima: não há
• Assunto: a desumanização do ambiente urbano
• Recursos: disposição dos versos privilegiando integração entre a forma e conteúdo. Ex.: versos 7, 8, 9, 10 = foco visual: um funil.
• Perguntas:
- Quem está destruindo o verde e o azul? Os arranha-céus.
- Para o poeta, os verdadeiros monstros são? Os arranha-céus.
- Como as pessoas vêem o céu por causa do arranha-céu? Através de suas gargantas ressecas.
- Segundo o texto, quem bebe a luz é? O arranha-céu.
- Onde ficava a grande árvore? De fronte a janela, onde trabalhava o poeta.
Portanto, neste poema, o eu-lírico luta contra a era moderna: a massificação, cidades grandes, a vida agitada, com o olhar de um condenado (pessimismo).
Textos escolhidos:
Os poemas
Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam vôo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto
alimentam-se um instante em cada par de mãos
e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhoso espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...
Espelho
Por acaso, surpreendo-me no espelho:
Quem é esse que me olha e é tão mais velho que eu? (...)
Parece meu velho pai - que já morreu! (...)
Nosso olhar duro interroga:
"O que fizeste de mim?" Eu pai? Tu é que me invadiste.
Lentamente, ruga a ruga... Que importa!
Eu sou ainda aquele mesmo menino teimoso de sempre
E os teus planos enfim lá se foram por terra,
Mas sei que vi, um dia - a longa, a inútil guerra!
Vi sorrir nesses cansados olhos um orgulho triste..."
A rua dos cataventos
Da vez primeira em que me assassinaram,
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha.
Depois, a cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha.
Hoje, dos meu cadáveres eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada.
Arde um toco de Vela amarelada,
Como único bem que me ficou.
Vinde! Corvos, chacais, ladrões de estrada!
Pois dessa mão avaramente adunca
Não haverão de arracar a luz sagrada!
Aves da noite! Asas do horror! Voejai!
Que a luz trêmula e triste como um ai,
A luz de um morto não se apaga nunca!
Poema da gare de Astapovo
O velho Leon Tolstoi fugiu de casa aos oitenta anos
E foi morrer na gare de Astapovo!
Com certeza sentou-se a um velho banco,
Um desses velhos bancos lustrosos pelo uso
Que existem em todas as estaçõezinhas pobres do mundo
Contra uma parede nua...
Sentou-se ...e sorriu amargamente
Pensando que
Em toda a sua vida
Apenas restava de seu a Gloria,
Esse irrisório chocalho cheio de guizos e fitinhas
Coloridas
Nas mãos esclerosadas de um caduco!
E entao a Morte,
Ao vê-lo tao sozinho aquela hora
Na estação deserta,
Julgou que ele estivesse ali a sua espera,
Quando apenas sentara para descansar um pouco!
A morte chegou na sua antiga locomotiva
(Ela sempre chega pontualmente na hora incerta...)
Mas talvez não pensou em nada disso, o grande Velho,
E quem sabe se ate não morreu feliz: ele fugiu...
Ele fugiu de casa...
Ele fugiu de casa aos oitenta anos de idade...
Não são todos que realizam os velhos sonhos da infância!
O Morto
Eu estava dormindo e me acordaram
E me encontrei, assim, num mundo estranho e louco...
E quando eu começava a compreendê-lo
Um pouco,
Já eram horas de dormir de novo!
Minha Canção
Minha terra não tem palmeiras...
E em vez de um mero sabiá,
Cantam aves invisíveis
Nas palmeiras que não há.
Minha terra tem refúgios,
Cada qual com a sua hora
Nos mais diversos instantes...
Mas onde o instante de agora?
Mas a palavra "onde"?
Terra ingrata, ingrato filho,
Sob os céus de minha terra
Eu canto a Canção do Exílio.
O silêncio
O mundo, às vezes, fica-me tão insignificativo
Como um filme que houvesse perdido de repente o som.
Vejo homens, mulheres, peixes abrindo e fechando a
[boca num aquário
Ou multidões: macacos pula-pulando nas arquibancadas
[dos estádios...
Mas o mais triste é essa tristeza toda colorida dos
[carnavais
Como a maquilagem das velhas prostitutas fazendo
[trottoir.
Às vezes eu penso que já fui um dia um rei, imóvel no
[seu palanque,
Obrigado a ficar olhando
Intermináveis desfiles, torneiros, procissões, tudo isso...
Oh! Decididamente o meu reino não é deste mundo!
Nem do outro...
Fonte: www.
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